Eu sou água • Taboão, MG

indígena olhando floresta agua

Sob a sombra fresca das árvores, em uma tarde de agosto de 2014, em Juiz de Fora, pude tecer, com Ailton Krenak, essas conversas que seguem por muito tempo reverberando na alma. Aos 62 anos, Ailton é uma importante liderança política e intelectual dos povos indígenas no Brasil. Pertencente à etnia Krenak, que vive na região do vale do rio Doce, Ailton contou sobre a relação do seu povo com a água e, de maneira especial, com o rio Doce, o Uatú, como o chamam.
“Na nossa tradição, na nossa cultura, o rio é um parente nosso, ele é da nossa família. Nós cantamos pra ele porque ele é nosso avô. (…) Nós cantamos pra ele, agradecemos a ele os alimentos que ele nos dá, fazemos nossos rituais com ele”. Ailton canta uma parte da canção na língua krenak que distingue “as águas que correm das cachoeiras, as águas dos rios, as águas que correm límpidas sobre as lápides de pedra”. Para ele, essa reverência “é uma poética de louvor, assim, e de cântico mesmo pra esse maravilhoso bem comum, que pra nós ele transcende até a ideia de alguma coisa que é um recurso natural. Pra nós ele é uma entidade, as águas são entidades, no sentido vivo, no sentido vivificador”.
Ele conta que “o rio Doce é um dos nossos importantes rios que nascem na serra do Espinhaço; ele recebe água do Santo Antônio que cai no Piracicaba e depois forma um grande corpo d’água que é esse Uatu”. E ali já expressava sua preocupação com o sofrimento do rio, que teve que enfrentar a construção de hidroelétricas e o uso tão desrespeitoso das cidades vizinhas.

“Se você transforma um rio em esgoto ou se você tampa esse rio, sepulta esse rio, e faz ele correr em galerias, ele vira coletor de esgoto de uma cidade, você nunca mais vai ter esse rio vivo, você matou um rio. E matar um rio, matar um bem comum da humanidade deveria ser também considerado um crime contra a humanidade. Mas a banalização da relação do homem com a natureza, principalmente com a água, demonstra que essa cultura de consumo que a gente convive com ela hoje, ela pensa que a água é alguma coisa que está fora de nós, que está fora de mim, fora de você. Mas na verdade, o nosso corpo, a maior parte do que constitui o nosso organismo é água. 70% de mim é água. Então, eu sou água. Eu sou água, você é água. Só que nós não temos isso como uma consciência integrada. No cotidiano, as pessoas não lembram que são água. Eles pensam que água é aquilo que eles tiram… abrem a torneira e jorra dali de dentro, um líquido que eles chamam de água. Eles não percebem o dom maravilhoso que a criação nos legou que são as fontes de água pura, que é uma medicina. A água nos cura, lava, alimenta, supre muitas das nossas necessidades. E principalmente nas regiões urbanas, as pessoas tratam a água da maneira mais desrespeitosa. Consomem a água de maneira irresponsável e não têm a menor noção”.

Essa relação utilitária com a água, que a coloca nesse lugar de “coisa” ou “objeto”, e que para Ailton é decorrente da cultura de consumo dentro da qual a nossa sociedade tem fincado seus valores e sua cosmologia, é apenas uma possível relação. Nessa conversa, a narrativa do Ailton traz justamente outras possibilidades de relação não apenas com a água, mas com o que nós estamos acostumados a chamar de “natureza”. Essas relações que partem de uma compreensão integradora do mundo e do humano, para Ailton não são algo distante ou que precisemos aprender. Elas possuem como referência as memórias afetivas e modos de vida dos povos e comunidades “espalhadas pelo Brasil afora”.
“A memória da água é como o ar que nós respiramos. Nós somos água e se dissociar dessa memória é viver ou sobreviver de uma maneira doentia, né? É uma alienação tão absurda que eu fico impressionado como que nós deixamos as coisas chegarem a esse ponto”.
A compreensão do rio como Ser e não coisa, como Sagrado e não banal é algo ainda pouco claro para a cultura ocidental, que percebe a água apenas como um recurso e um insumo para a produção.
Ailton, ainda, demonstra seu espanto com a ideia de que é possível limpar a água que sujamos. “Você hoje tem esses processos químicos de recuperar ela, de limpar ela. Mas isso é mentira. Você não vai revitalizar um organismo vivo desse que nasce das montanhas, que nasce dos ciclos da chuva, dos ciclos das geleiras, das águas que vêm das altas montanhas que degelam e abastecem os corpos d’água, você não vai purificar uma água dessa com processos químicos essas coisas. Você vai aparentemente limpar aquela água, mas você vai beber uma água que ta morta. A vida dela, aquela vida que pode te dar o dom da vida, que pode te batizar ela já tá retirada”.
E pensar que naquele momento não podíamos imaginar que em pouco mais de um ano aconteceria a maior tragédia ambiental já ocorrida em solo brasileiro, justo ali, no rio Doce. Hoje, revisitando a conversa com o Ailton, é quase impossível não se emocionar ao lembrar os seus olhos negros tão cheios de vida e brilho se avivarem ainda mais enquanto falava sobre o rio.
E termina a conversa dizendo: “Talvez aquela água morta seja boa pra pessoas mortas, porque nós que estamos vivos e queremos continuar vivendo, a gente deveria reconhecer a água como um organismo vivo e ter uma relação reverente com a água. A água não é um lugar pra gente jogar esgoto”.

texto: Raquel Lara Rezende / foto: Felipe Saleme
(Entrevista realizada via projeto Espelho D’água – Lei Murilo Mendes, Funalfa, Prefeitura de Juiz de Fora – MG)

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